sábado, 15 de dezembro de 2012

VIII - David Mourão-Ferreira



NOTA BIOGRÁFICA
David de Jesus Mourão-Ferreira

Lisboa (24/2/1927) - Lisboa (16/6/1996)
Autor multifacetado - poeta, crítico, ensaísta, contista, novelista, romancista, cronista, dramaturgo, tradutor, conferencista, polemista -, nasce para a literatura em 1945, ano em que publica os seus primeiros poemas na revista Seara Nova.

Porém, o seu primeiro livro A Secreta Viagem, surgiu apenas em 1950, no mesmo ano em que, de parceria com António Manuel Couto Viana e Luiz de Macedo, lança as folhas de poesia Távola Redonda, que cessariam a sua publicação em 1954.

Em 1956, o seu nome aparece no elenco redactorial da revista Graal, onde aliás colabora com notas e recensões, uma novela (E aos Costumes Disse Nada), uma peça de teatro (Contrabando) e um longo ensaio sobre a poesia de Vinícius de Morais. David Mourão Ferreira é uma referência fulcral da história da literatura e da cultura do século XX.

Secretário de Estado da Cultura do último governo provisório e dos 1º e 4º governos constitucionais do pós-25 de Abril, a ele se deve, entre outras iniciativas, a criação do Museu Nacional de Literatura, no Porto.

O seu primeiro romance Um Amor Feliz (1986), foi galardoado com os prémios: Grande Prémio de Ficção da Associação Portuguesa de Escritores; Prémio Cidade de Lisboa; Prémio Pen Clube e Prémio D. Dinis, da Casa de Mateus.

Foi também um divulgador de poesia, tendo publicado vários artigos em jornais e tendo participado nas Tardes Poéticas do Teatro Nacional e, sobretudo, deixou uma óptima imagem de comunicador, em programas de televisão como Vinte Poetas Contemporâneos ou Imagens da Poesia Contemporânea.Faleceu em 1996, em Lisboa, sem deixar de escrever em Os Ramos e os Remos que “Antes de sermos fomos uma sombra / Depois de termos sido que nos resta / É de longe que a vida nos aponta / É de perto que a morte nos aperta.”

In: www.presenca.pt/

A MINHA SELECÇÃO

A Boca as Bocas
Apenas uma boca. A tua Boca
Apenas outra , a outra tua boca
É Primavera e ri a tua boca
De ser Agosto já na outra boca

Entre uma e outra voga a minha boca
E pouco a pouco a polpa de uma boca
Inda há pouco na popa em minha boca
É já na proa a polpa de outra boca.

Sabe a laranja a casca de uma boca
Sabe a morango a noz da outra boca
Mas sabe entretanto a minha boca

Que apenas vai sentindo em sua boca
Mais rouca do que a boca a minha boca
Mais louca do que a boca a tua boca.



Sala de Espera
Quem foi
antes de mim não demorou,
Aqui, senão o tempo de cansar-se....
Fiquei, na sala verde, eu só:
A sós comigo, só
Impuro e sem disfarce..

Verde, também, a vida onde esperamos
O fim que bem sabemos nos espera....
M as enquanto aqui estamos
Sejam verdes os ramos
E verde a Primavera....

Quem por aqui passou, passou
Em busca dum pavor que lhe faltara...
Fiquei, nasala verde, eu só.
(Agora nem me dou
à flor mais rara....)

Perto me aguarda a simples decisão.
(Que por enquanto, aqui, é só a espera.)
- E , arrependido, o coração
Vai dizendo que não
À Primavera.


Entretanto 
Entre missas e mísseis teus irmãos
Entre medos e mitos teus amigos
Entretanto entre portas tu contigo
Entretido a sonhar como eles vão.

Entre que muros moram suas mãos
Entre que murtas montam seus abrigos
Entre quem possa ver deste postigo
Entre que morros morrem de aflição

Entre murros enfrentam-se os mais tristes
Entre jogos ou danças proibidas
Entre Deus e a droga os menos fortes

Entre todos e tu vê o que existe
Entreacto em comum somente a vida
Entre tímidas aspas já a morte.
 


Praia do Paraíso
Era a primeira
vez que nus os nossos corpos
Apesar da penumbra á vontade se olhavam
Surpresos de saber que tinham tantos olhos
Que podiam ser luz de tantos candelabros
Era a primeira vez cerrados os estores
Só o rumor do mar permanecera em casa
E sabias a sal, e cheiravas a limos
Que tivesses ouvido o canto das cigarras
Havia mais que céu no céu do teu sorriso
Madrugada de tudo em tudo que sonhavas
Em teus braços tocar era tocar os ramos
Que estremecem ao sol desde que o mundo é mundo
É preciso afinal chegar aos cinquenta anos
Para se ver que aos vinte é que se teve tudo.


quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

II - Décio Pignatari




NOTA BIOGRÁFICA
Décio Pignatari

Jundiaí, 20 de Agosto de 1927- São Paulo, 2 de Dezembro de 2012
Publicitário, teórico da comunicação e escritor paulista.

Um dos fundadores, ao lado dos irmãos Haroldo de Campos e Augusto de Campos, da literatura concreta nos anos 50.

Nasce em Jundiaí e vive em Osasco, próximo da capital paulista, até à adolescência. Estuda direito na Universidade de São Paulo (USP) nos anos 40.

Começa as primeiras experiências poéticas no final dessa década e, em 1952, cria com os irmãos Campos o grupo Noigandres, núcleo que dá origem à literatura concreta. Em 1956 inicia uma bem-sucedida carreira de publicitário, chegando a ter a sua própria agência.

Dedica-se ao estudo da teoria da comunicação e dá aulas na Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio de Janeiro, e na PUC, em São Paulo. Em seguida torna-se professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e passa a colaborar activamente em jornais, revistas, TV e rádio.

Polémico e irreverente, reúne seus textos teóricos em livros como Informação, Linguagem, Comunicação (1968), Contracomunicação (1972) e Semiótica e Literatura (1974). O Rosto da Memória (1986) e Panteros (1992) são suas obras mais recentes.

in: http://www.algosobre.com.br/biografias/decio-pignatari.html


A MINHA SELECÇÃO











































eupoema

O lugar onde eu nasci nasceu-me
num interstício de marfim,
entre a clareza do início
e a celeuma do fim

Eu jamais soube ler: meu olhar
de errata a penas deslinda as feias
fauces dos grifos e se refrata:
onde se lê leia-se.

Eu não sou quem escreve,
mas sim o que escrevo:

Algures Alguém
são ecos do enlevo.

I - Adélia Prado


NOTA BIOGRÁFICA
Adélia Luzia Prado Freitas

Divinópolis (Minas Gerais) 13 de Dezembro de 1963, é uma escritora Brasileira. Os textos retratam o quotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características do seu estilo único.

Segundo Carlos Drummond de Andrade, "Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis". 

Professora por formação, exerceu o magistério durante 24 anos, até que a carreira de escritora se tornou a sua actividade central.


in: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado  


A MINHA SELECÇÃO
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.


Impressionista

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa
toda de alaranjado brilhante.

Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

Sedução

A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.

Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.

Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.

Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.

Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.

Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.

É de ferro a roda dentada dela.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

VII - António Aleixo



NOTA BIOGRÁFICA
António Fernandes Aleixo



Poeta português, natural de Vila Real de Santo António. (1899-1949)
Sem qualquer formação literária, foi tecelão, servente de pedreiro, pastor de cabras e cauteleiro, actividades que o levaram a um percurso nómada, particularmente esta última, propiciador de uma apurada reflexão sobre vários aspectos da vida em seu redor. 


O tom dorido da sua poesia reflecte bem a vida difícil que teve. 

As suas quadras, fruto da sua veia poética, aliada a uma grande sabedoria popular, integram-se numa tradição da poesia e da música populares, com uma estrutura simples a nível dos versos e uma expressão muitas vezes humorística, eficaz quanto à revelação de aspectos sociais contraditórios ou injustos. 

As quadras encontram-se reunidas em Quando Começo a Cantar (1943), Auto da Vida e da Morte (1948), Este Livro que Vos Deixo (1969) e Inéditos de António Aleixo (1978). 


In: http://www.astormentas.com/PT/biografia/Ant%C3%B3nio%20Fernandes%20Aleixo

A MINHA SELECÇÃO
A Torpe Sociedade onde Nasci  

I
Ao ver um garotito esfarrapado
Brincando numa rua da cidade,
Senti a nostalgia do passado,
Pensando que já fui daquela idade.

II
Que feliz eu era então e que alegria...
Que loucura a brincar, santo delírio!...
Embora fosse mártir, não sabia
Que o mundo me criava p'ra o martírio!

III
Já quando um homenzinho, é que senti
O dilema terrível que me impôs
A torpe sociedade onde nasci:
— De ser vítima humilde ou ser algoz...

IV
E agora é o acaso quem me guia.
Sem esperança, sem um fim, sem uma fé,
Sou tudo: mas não sou o que seria
Se o mundo fosse bom — como não é!

V
Tuberculoso!... Mas que triste sorte!
Podia suicidar-me, mas não quero
Que o mundo diga que me desespero
E que me mato por ter medo à morte... 



Não Creio nesse Deus  

I
Não sei se és parvo se és inteligente
— Ao disfrutares vida de nababo
Louvando um Deus, do qual te dizes crente,
Que te livre das garras do diabo
E te faça feliz eternamente.

II
Não vês que o teu bem-estar faz d'outra gente
A dor, o sofrimento, a fome e a guerra?
E tu não queres p'ra ti o céu e a terra..
— Não te achas egoísta ou exigente?

III
Não creio nesse Deus que, na igreja,
Escuta, dos beatos, confissões;
Não posso crer num Deus que se maneja,
Em troca de promessas e orações,
P'ra o homem conseguir o que deseja.

IV
Se Deus quer que vivamos irmãmente,
Quem cumpre esse dever por que receia
As iras do divino padre eterno?...
P'ra esses é o céu; porque o inferno
É p'ra quem vive a vida à custa alheia!  



Porque o Povo Diz Verdades  

Porque o povo diz verdades,
Tremem de medo os tiranos,
Pressentindo a derrocada
Da grande prisão sem grades
Onde há já milhares de anos
A razão vive enjaulada.

Vem perto o fim do capricho
Dessa nobreza postiça,
Irmã gémea da preguiça,
Mais asquerosa que o lixo.

Já o escravo se convence
A lutar por sua prol
Já sabe que lhe pertence
No mundo um lugar ao sol.

Do céu não se quer lembrar,
Já não se deixa roubar,
Por medo ao tal satanás,
Já não adora bonecos
Que, se os fazem em canecos,
Nem dão estrume capaz.

Mostra-lhe o saber moderno
Que levou a vida inteira
Preso àquela ratoeira
Que há entre o céu e o inferno.
 

A minha Cidade tem um Rio




A minha cidade tem um rio.
Rio que porque tinha vida
A embelezava.

As cidades do meu País têm rios.
Rios que porque tinham vida
As embelezavam.

A vida desses Rios
Deixava sonhar.
Amar.
Tanta poesia
Vestia
A vida
Dos rios das minhas cidades.

Agora,
A minha cidade tem um rio
Sem vida.
Mataram os rios
Das cidades do meu País.
Ja não se pode sonhar
Nem amar
Pela vida desses rios.

Os rios das minhas cidades
Já não têm
Poesia.

Mataram os rios
Das cidades do meu País.

©Brites dos Santos

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

VI - José Fanha


NOTA BIOGRÁFICA
José Manuel Kruss Fanha Vicente

Nasceu em Lisboa em 19/02/51.
Arquitecto não praticante. Professor do Ensino Secundário. É actualmente, a tempo inteiro, guionista para televisão e cinema.


Poeta, declamador, autor de letras para canções e de histórias para crianças, autor de textos para televisão, para rádio e para teatro. Pintor nas horas vagas.


Entre muitas outras aventuras, integrou em 69/70 o grupo de teatro da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, foi fundador em 73 e animador do grupo de teatro “Lídia a mulher tatuada e os seus actores amestrados”, participou em 77 no concurso de televisão “ A visita da Cornélia”, colaborou nos programas de rádio “Pão com manteiga” e “Uma vez por semana”, tem colaborado periódicamente desde 79 com João Lourenço e Vera SanPayo Lemos na adaptação de inúmeros textos teatrais desde “Baal até à “Ópera dos três vinténs”, ambos de Bertolt Brecht.

In: Eu sou português aqui - Obras de José Fanha - Ulmeiro – 1995

A MINHA SELECÇÃO


EU SOU PORTUGUÊS AQUI

Eu sou português
aqui
em terra e fome talhado
feito de barro e carvão
rasgado pelo vento norte
amante certo da morte
no silêncio da agressão.

Eu sou português
aqui
mas nascido deste lado
do lado de cá da vida
do lado do sofrimento
da miséria repetida
do pé descalço
do vento.

Nasci
deste lado da cidade
nesta margem
no meio da tempestade
durante o reino do medo.
Sempre a apostar na viagem
quando os frutos amargavam
e o luar sabia a azedo.

Eu sou português
aqui
no teatro mentiroso
mas afinal verdadeiro
na finta fácil
no gozo
no sorriso doloroso
no gingar dum marinheiro.

Nasci
deste lado da ternura
do coração esfarrapado
eu sou filho da aventura
da anedota
do acaso
campeão do improviso,
trago as mão sujas do sangue
que em papa a terra que piso.

Eu sou português
aqui
na brilhantina em que embrulho,
do alto da minha esquina
a conversa e a borrasca
eu sou filho do sarilho
do gesto desmesurado
nos cordéis do desenrasca.

Nasci
aqui
no mês de Abril
quando esqueci toda a saudade
e comecei a inventar
em cada gesto
a liberdade.

Nasci
aqui
ao pé do mar
duma garganta magoada no cantar.
Eu sou a festa
inacabada
quase ausente
eu sou a briga
a luta antiga
renovada
ainda urgente.

Eu sou português
aqui
o português sem mestre
mas com jeito.
Eu sou português
aqui
e trago o mês de Abril
a voar
dentro do peito.

Eu sou português aqui


TODAS AS BIBLIOTECAS

Todas as bibliotecas estão cheias de lágrimas
E crinas de cavalos verdes

Todas elas são forradas
Com o canto proibido das sereias.

Em todas elas
– repara –
Os livros são labaredas
No silêncio das paredes



ASAS

Nós nascemos para ter asas, meus amigos.
Não se esqueçam de escrever por dentro do peito: 

nós nascemos para ter asas.

No entanto, em épocas remotas, vieram com dedos
pesados de ferrugem para gastar as nossas asas 

como se gastam tostões.

Cortaram-nos as asas para que fôssemos apenas
operários obedientes, estudantes atenciosos, 

leitores ingénuos de notícias sensacionais, gente pouca, pouca e seca.

Apesar disso, sábios, estudiosos do arco-íris  e de coisas transparentes, 

afirmam que as asas dos homens crescem
mesmo depois de cortadas e novamente cortadas,
de novo voltam a ser.


Aceitemos esta hipótese, 

apesar de não termos dela qualquer confirmação prática.
Por hoje é tudo. Abram as janelas. Podem sair. 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

V - Pedro Homem de Melo




NOTA BIOGRÁFICA
Pedro da Cunha Pimentel Homem de Melo

(Porto, 5 de Setembro de 1904 — Porto, 5 de Março de 1984) foi um poeta, professor e folclorista português.

A sua extensa obra encontra-se dispersa pelos vinte e dois livros que escreveu, no período que se estendeu de 1934 a 1979.

Foi um dos colaboradores do movimento da revista Presença. Apesar de gabada por numerosos críticos, a sua vastíssima obra poética, eivada de um lirismo puro e pagão (claramente influenciada por António Botto e Federico García Lorca), está injustamente votada ao esquecimento. Entre os seus poemas mais famosos destacam-se Povo que Lavas no Rio e Havemos de Ir a Viana, imortalizados por Amália Rodrigues, e O Rapaz da Camisola Verde.

Escreveu sobre si próprio:
"Tudo aquilo que, até hoje, escrevi ou mostrei, resultou, apenas, do que sentiram, durante meio século, os meus olhos, os meus ouvidos, os meus pés (e o mesmo será dizermos o meu corpo e a minha alma!) de bailador." 


A MINHA SELECÇÃO

HAVEMOS DE IR A VIANA
 
Entre sombras misteriosas
em rompendo ao longe estrelas
trocaremos nossas rosas
para depois esquecê-las.

Se o meu sangue não me engana
como engana a fantasia
havemos de ir a Viana
ó meu amor de algum dia
ó meu amor de algum dia
havemos de ir a Viana
se o meu sangue não me engana
havemos de ir a Viana.

Partamos de flor ao peito
que o amor é como o vento
quem pára perde-lhe o jeito
e morre a todo o momento.

Ciganos, verdes ciganos
deixai-me com esta crença
os pecados têm vinte anos
os remorços têm oitenta.

POVO QUE LAVAS NO RIO

Povo que lavas no rio
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão
Há-de haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não
Fui ter à mesa redonda
Beber em malga que esconda
Um beijo de mão em mão
Era o vinho que me deste
Água pura em fruto agreste
Mas a tua vida não


Aromas de urze e de lama
Dormi com eles na cama
Tive a mesma condição
Povo, povo eu te pertenço
Deste-me alturas de incenso
Mas a tua vida não

PEDRO HOMEM DE MELO

Talvez que eu morra na praia
Cercada em pérfido banho
Por toda a espuma da práia
Como um pastor que desmaia
No meio do seu rebanho.....


Talvez que eu morra na rua
- invia por mim derrepente
Em noite fria, sem lua
Irmão das pedras da rua
Pisadas por toda a gente!


Talvez que eu morra entre grades
No meio de uma prisão
Porque o mundo além das grades
Venha esquecer as saudades
Que roem meu coração.
Talvez que eu morra dum tiro
Castigo de algum desejo.
E que, a mercê desse tiro,
O meu último suspiro
Seja o meu primeiro beijo


Talvez que eu morra no leito
Onde a morte é natural
As mãos em cruz sobre o peito
Das mãos de deus tudo aceito
Mas que eu morra em Portugal!






IX - O relógio da vida






olhei para o relógio
e não queria acreditar
sem reacçõo
dei por mim
a desesperar

olhei aterrado
tornei a olhar
inexoravelmente
lá estava marcada
aquela hora

assaltou-me de repente
o súbito desejo
de deitar o relógio fora
mas esse despejo
não iria modificar
o sistema

aquela maldita hora
essa ia lá continuar

não ia resolver o problema
essa atitude estrema
era energia perdida

eu já sabia
que não se consegue parar
o relógio da vida

© Brites dos Santos

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

IV - Mário - Henrique Leiria





NOTA BIOGRÁFICA  
Mário-Henrique Leiria

Lisboa 2 de janeiro de 1923 - Cascais 9 de janeiro de 1980), Escritor surrealista português.
Aluno da ESBA, é expulso em 1942  por motivos políticos. Participou nas actividades do Grupo Surrealista de Lisboa.  Em 1962 é preso pela PIDE.

Instala-se no Brasil onde desenvolve várias actividades, como a de encenador e de director literário da Editora Samambaia. Regressa em 1970. 

Publicou Contos do Gin-Tonic (1973), Novos Contos do Gin (1974), Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças (1975) Casos de Direito Galáctico (1975), O Mundo Inquietante de Josela - fragmentos (1975) e Lisboa ao Voo do Pássaro (1979). 

Colaborou, com pequenos contos, no suplemento Fim-de-semana, do jornal República e no semanário humorístico, "Pé de Cabra". Chefiou a redacção de O Coiso, semanário impresso nas oficinas do República, durante 13 semanas, em 1975.

Aderiu em 1976 ao PRP - Partido Revolucionário do Proletariado. Alguns textos seus, escritos em colaboração, foram recolhidos na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito (1961), organizada por Mário Cesariny.

A MINHA SELECÇÃO


RIFÃO QUOTIDIANO

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece


A FAMÍLIA

Vamos à pesca
disse o pai
para os três filhos
vamos à pesca do esturjão
nada melhor do que pescar
para conservar
a união familiar
a mãe deu-lhe razão
e preparou
sem mais detença
um bom farnel
sopa de couves com feijão
para ir também
à pescaria do esturjão
e a mãe e o pai
e os três filhos
foram à pesca
do esturjão
todos atentos
satisfeitíssimos
que bom pescar
o esturjão!
que bom comer
o belo farnel
sopa de couves com feijão!
e foi então
que apanharam
um magnífico esturjão
que logo quiseram
ali fritar
mas enganaram-se na fritada
e zás fritaram o velho pai
apetitoso
muito melhor
mais saboroso
do que o esturjão

vamos para casa
disse o esturjão.



PEQUENOS CONTOS

Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia.



Telefonaram-lhe para casa e perguntaram-lhe se estava em casa.
Foi então que deu pelo facto. Realmente tinha morrido havia já dezassete dias.
Por vezes as perguntas estúpidas são de extrema utilidade.



Ainda me lembro. O melhor presente que tive foi sem dúvida aquela flóber. Toda a garotada da terra colaborou no meu entusiasmo. Íamos para o campo, pam pam, pardal aqui, pam pam, pardal ali.
A única arrelia que tive com ela foi quando um dia, sem querer, pam, acertei em cheio na tia Albertina.
Para castigo não me deixaram ir ao enterro.



O Alfredo atirou o jornal ao chão, irritadíssimo, e virou-se para mim:
- Estes jornalistas! Passam a vida a inventar coisas, é o que te digo. Então não afirmam que, no Sardoal, foi encontrado um frango com três pernas! Vê lá tu! É preciso ter descaramento.
Ajeitou-se melhor no sofá e, realmente indignado, coçou a tromba com a pata do meio.
 


  

domingo, 25 de novembro de 2012

III - Almada Negreiros




NOTA BIOGRÁFICA
José de Almada Negreiros

Nasceu a 7 de Abril de 1893 na Roça da Saudade em S.Tomé e Príncipe e faleceu em Lisboa em 15 de junho de 1970.

A sua vida foi dedicada a diversas actividades:
Artista plástico, Poeta, Ensaísta, Romancista e Dramaturgo.

Em 1913 ligou-se ao movimento modernista,
fazendo parte da "Geração de Orpheu"

Auto defenia-se como "Modernista, Futurista e tudo..."
Sempre utilizou uma linguagem muito elementar (era assim considerada) tanto na escrita como nos desenhos. A criatividade e imaginação caracterizam toda a sua vasta obra.


A MINHA SELECÇÃO

MANIFESTO ANTI-DANTAS
Deixo aqui o final deste fabuloso texto, mas...
Não percam o texto INTEGRAL

 ..............
Morra o Dantas, morra! Pim!
Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mas atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
Morra o Dantas, morra! Pim!


RONDEL DO ALENTEJO

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.

Meia-noite
do Segredo
no penedo
duma noite
de luar.

Olhos caros
de Morgada
enfeitava
com preparos
de luar.

Rompem fogo
pandeiretas
morenitas,
bailam tetas
e bonitas,
bailam chitas
e jaquetas,
são de fitas
desafogo
de luar.

Voa o xaile
andorinha
pelo baile,
e a vida
doentinha
e a ermida
ao luar.

Laçarote
escarlate
de cocote
alegria
de Maria
la-ri-rate
em folia
de luar.

Giram pés
giram passos
girassóis
os bonés,
os braços
estes dois
iram laços
o luar.

colete
esta virgem
endoidece
como o S
do foguete
em vertigem
de luar.

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.


CONTOS PEQUENÍSSIMOS

esta grandeza de não a ter
é mais pequena que a de não desejar tê-la
e se o preço de participar é grandeza
não contem comigo
não participo
não participo nem contra grandeza
nasci ar
em forma de gente
nasci luz
em forma de gente
não me compreendo
e respiro-me
e vejo-me textual
a forma de gente faz-me agir fora do que nasci ar
fora do que nasci luz
e nasci ar para forma de gente
e nasci luz para forma de gente
nasci antes de mim
antes de forma de gente
era génio antes de nascer
em forma de gente
a forma de gente não me deixa ser o génio que nasci.


 






II - Abade de Jazente




NOTA BIOGRÁFICA
Paulino António Cabral,

Nasceu e faleceu em Amarante  (1719-1789).  
Foi abade da freguesia de Jazente, daí o nome por que é mais conhecido (Abade de Jazente). Pertenceu à Arcádia Portuense, juntamente com Xavier de Matos, seu colega de Coimbra, cidade onde ambos estudaram.

A sua obra fornece-nos preciosos depoimentos históricos e também por ela sabemos dos seus prazeres (Caça, pesca, jogo e boa mesa), das suas fraquezas, do seu triste envelhecer e dos seus amores. Além de poesia de circunstância e romântica, escreveu também textos de conteúdo moral.


As suas obras foram publicadas em dois volumes: 
Poesias de Paulino Cabral de Vasconcelos, Abade de Jazente, vol. I (Porto, 1786) e Poesias de Paulino António Cabral, vol. II (Porto, 1787).


A MINHA SELECÇÃO

SONETO

Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cu de tanta alvura;
Mas ver cagar, contudo a formosura
Mete nojo à vontade mais gulosa!

Ela a massa expulsou fedentinosa
Com algum custo, porque estava dura:
Uma carta de amores de alimpadura
Serviu àquela parte mal cheirosa:

Ora mandem à moça mais bonita
Um escrito de amor que, lisonjeiro,
Afetos move, corações incita:

Para o ir servir de reposteiro
À porta onde o fedor e a trampa habita,
Do sombrio palácio do alcatreiro! 



SONETO II

   
Piolhos cria o cabelo mais dourado;
branca remela o olho mais vistoso;
pelo nariz do rosto mais formoso
o monco se divisa pendurado:

Pela boca do rosto mais corado
hálito sai, às vezes bem ascoroso;
a mais nevada mão é sempre forçoso
que de sua dona o cu tenha tocado;

Ao pé dele a melhor natura mora,
que deitando no mês podre gordura,
fétido mijo lança a qualquer hora:

Caga o cu mais alvo merda pura:
pois se é isto o que tanto se namora,
em ti mijo, em ti cago, oh formosura! 




A CARESTIA DA VIDA

A trinta e cinco reis custa a pescada:
O triste bacalhau a quatro e meio:
A dezasseis vinténs corre o centeio:
Do verde a trinta reis custa a canada.

A sete, e oito tostões custa a carrada
Da torta lenha, que do monte veio:
Vende as sardinhas o galego feio
Cinco ao vintém; e seis pela calada.

O cujo regatão vai com excesso,
Revendendo as pequenas iguarias,
Que da pobreza são todo o regresso.

Tudo está caro: só em nossos dias,
Graças ao Céu! Temos em bom preço
Os tramoços, o arroz e as Senhorias.

INTERVALO


sexta-feira, 23 de novembro de 2012

VIII - Deixem-me estar sossegado





Deixem-me estar sossegado.
Estou a pedir-vos para me deixarem estar sossegado.
Porque é que não me deixam estar sossegado ?

Estou farto de vos dizer.
Estou farto de vos pedir
E tremo só de perceber
Que não querem ouvir
Que eu não quero ser um alinhado
Muito bem educado,
Cuidadosamente engravatado
Com uma gravata de ultima moda
Cheia de bonecos e saliências.
Não quero ser alguém que se acomoda
Nessas inúteis aparências
Quero antes ser alguém que se incomoda!
Ouviram bem? Alguém que se incomoda!

Até já me têm criticado
Por não andar engravatado!
Por favor deixem-se dessas insistências,
Eu não quero ter estampado
Numa cara de ridícula anedota
Um sorriso falso e idiota,
Um daqueles sorrisos que querem parecer verdadeiros
Pretensamente saídos de gentis cavalheiros
Mas que mais se assemelham a tristes esgares
Saídos afinal de falsos cavalheiros.

Deixem-me estar sossegado.
Estou a pedir-vos para me deixarem estar sossegado.
Não, já vos disse que não.
Não quero ir a jantares.
Vão vocês aos jantares.
Comam tudo e divirtam-se bastante
Nesses horríveis e entediantes jantares.
Eu não quero estar presente nem por um breve instante.
Já disse que não quero ir.
Não me obriguem a ir.
Porque é que me querem obrigar a ir?
E ainda por cima com o reles argumento
De que os jantares fazem parte das obrigações profissionais?
Até posso ser considerado um jumento,
Não me importo que me considerem um jumento,
Mas essa é demais...
Não quero ir,
Já disse que não quero ir!

E depois as conversas são sempre muito inteligentes
E eu não gosto de conversas inteligentes
Porque eu não sou inteligente.

Fala-se sempre e inevitavelmente
Com muita importância e muitos ares
De bons e grandes conhecedores,
Do excelente vinho da região tal,
Da marca tal,
Com um sabor tal,
Que acompanha muito bem não sei o quê.

Fala-se sempre e inevitavelmente
Com muita importância e muitos ares
De bons e grandes conhecedores,
De excelentes restaurantes
Onde se come muito bem não sei o quê.

Fala-se sempre e inevitavelmente
Com muita importância e muitos ares
De bons e grandes conhecedores,
De assuntos muito importantes.
De assuntos confidenciais e muito importantes!

Deixem-me estar sossegado.
Estou a pedir-vos para me deixarem estar sossegado.
Eu não quero pertencer à galeria dos importantes.
Porque é que eu hei-de pertencer aos importantes?
Eu não preciso de ser importante.
Ouviram bem?
Eu não quero ser importante.
Porque eu não sou importante.
Eu não quero entrar em surdas lutas de poder
Porque eu não quero ter poder!

Deixem-me estar sossegado.
Estou a pedir-vos para me deixarem estar sossegado.
Eu não preciso de conversas de bastidores.
Sejam vocês sózinhos traidores e estupores.
Sejam vocês sózinhos senhores doutores.
Eu não preciso de intrigas
E até faço figas
Para que se esqueçam de mim
Ouviram bem? Esqueçam-se de mim
Estou a pedir-vos encarecidamente que se esqueçam de mim.

Se vos dá assim tanta satisfação
Serem pessoas importantes
Sejam importantes sozinhos
Sejam elegantes sozinhos
Sejam conhecedores sozinhos
Mas comigo... não!
Eu quero estar de fora dessa relação carniceira
Quero viver a vida à minha maneira!

© Brites dos Santos

I - Fernando Pessoa



NOTA BIOGRÁFICA
Fernando António Nogueira Pessoa
Nasceu em Lisboa em 13 de junho de 1888 e faleceu em 30 de Novembro de 1935.  
Poeta, filósofo e escritor Português, é considerado um dos maiores poetas da língua Portuguesa e da Literatura Universal. 

A MINHA SELECÇÃO

ANTÓNIO DE OLIVEIRA SALAZAR
Fernando Pessoa

António de Oliveira Salazar
Três nomes em sequência regular...
António é António.
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.

Este senhor Salazar

É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
Água dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c’os diabos!
Parece que já choveu...

Coitadinho

Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade.
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.

Coitadinho

Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé.
Mas ninguém sabe porquê.

Mas afinal é

Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé.
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.


AUTOPSICOGRAFIA
Fernando Pessoa - Cancioneiro

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
 
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
 
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração. 


O TEJO É MAIS BELO
 Alberto Caeiro 
 
    O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
    Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
    Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.     
   O Tejo tem grandes navios
    E navega nele ainda,
    Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
    A memória das naus.
    O Tejo desce de Espanha
    E o Tejo entra no mar em Portugal.  
    Toda a gente sabe isso.
    Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
    E para onde ele vai
    E donde ele vem.
    E por isso porque pertence a menos gente, 
    É mais livre e maior o rio da minha aldeia.  
    Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
    Para além do Tejo há a América
    E a fortuna daqueles que a encontram.  
    Ninguém nunca pensou no que há para além
    Do rio da minha aldeia.
    O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.  
    Quem está ao pé dele está só ao pé dele.