quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

X - JOSÉ FANHA






QUESTÃO DE PALITOS
Li no jornal:
"Os palitos portugueses
são os mais bem afiados do mundo"

Já pude dormir descansado


UMA VIA À PORTUGUESA
Eu cá
quero é
o socialismo à portuguesa,
de moreno rosto,
uma via nova,
ainda não trilhada,
com a chispalhada,
com a feijoada,
com o entrecosto…

É nisso que acredito
e tenho fé.
Uma via original,
à portuguesa,
com o trabalho e o capital
sentados à mesma mesa,
no ministério do dito.
É nisso que eu acredito.

E não me venham falar
de revoluções impossíveis,
importadas do estrangeiro.
Não há nada neste mundo
como o suculento cheiro
do cozido à portuguesa.

Para fazer um bom cozido
é preciso juntar tudo,
o toucinho
e a nabiça,
a batata,
o chouriço,
a hortaliça,
a couve branca,
a carniça…

Se não está lá dentro tudo,
já não é um cozido à portuguesa.
Eu quero é uma revolução
que seja proletária,
enfim, está bem,
mas que também
seja burguesa.

E tudo o resto são tretas,
tudo o resto é utopia,
eu quero o chouriço de sangue,
a carniça,
a democracia,
a orelha de porco,
a carne de vaca,
o chispe à vontade,
eu quero é toda aquela chicha boa,
e depois,
sair por aí,
correr por Lisboa,
a arrotar a liberdade!"


GRITO
De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.

De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor eléctrica
do mais desvairado
coração.

De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.

De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.

De ti que domaste
o cavalo e os neutrões
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.

De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.

De ti que levaste
a volupta da ambição
a trepar erecta
contra as leis do firmamento.

De ti que deixaste um dia
que o teu corpo se cansasse
desta terra de amargura e alegria
e se espalhasse aos quatro cantos
diluído lentamente
no mais plácido
silente
e negro breu.

De ti
meu irmão
ainda ouço
o grito que deixaste
encerrado
em cada pétala do céu
cada pedra
cada flor.
O grito de revolta
que largaste à solta
e que ficou para sempre
em cada grão de areia
a ressoar
como um pálido rumor.
O grito que não cansa
de implorar
por amor
e mais amor
e mais amor.



ROMANCE INGÉNUO DE DUAS LINHAS PARALELAS
Duas linhas paralelas,
muito paralelamente,
iam passando entre estrelas
fazendo o que estava escrito:
caminhando eternamente
de infinito a infinito.

Seguiam-se passo a passo
exactas e sempre a par
pois só num ponto do espaço,
que ninguém sabe onde é,
se podiam encontrar,
falar e tomar café.

Mas farta de andar sozinha,
uma delas certo dia
voltou-se para a outra linha,
sorriu-lhe e disse-lhe assim:
«Deixa lá a geometria
e anda aqui para o pé de mim...»

Diz a outra: «Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
Se quisermos lá chegar,
temos de ir devagarinho,
andando sempre a direito
cada qual no seu caminho!»

Não se dando por achada
fica na sua a primeira
e sorrindo amalandrada,
pela calada, sem um grito,
deita a mãozinha matreira,
puxa para si o infinito.

E com ele ali à frente,
as duas a murmurar
olharam-se docemente,
e sem fazerem perguntas,
puseram-se a namorar,
seguiram as duas juntas.

Assim, nestas poucas linhas
fica uma estória banal
com linhas e entrelinhas
e uma moral convergente:
o infinito afinal
fica aqui ao pé da gente.


DÓI-ME O PEITO
Dr.
dói-me o peito
do cigarro
do bagaço
do catarro
do cansaço

dói-me o peito
do caminho
de ida e volta
do meu quarto
à oficina
sem parar
sempre a andar
sempre a dar

dói-me o peito
destes anos
tantos anos
de trabalho e combustão

dói-me o luxo
dói-me os fatos
dói-me os filhos
dói-me o carro
de quem pode
e eu a pé
sempre a pé

dói-me a esperança
dói-me a espera
pelo aumento
pela reforma
pelo transporte
pela vida e pela morte.

Dr.
já estou farto
de não ser
mais que um braço
para alugar
foi-se a força
e o meu corpo
é como o mosto pisado
como um pássaro insultado
por não poder mais voar.

Dr.
eu não sei ler
os caminhos
por dentro
dos hospitais
mas alguém há-de aprender
entre as rugas do meu rosto
o que não vem nos jornais
e não há nada no mundo
nem discurso
nem cartaz
capaz de gritar mais alto
que as palmas das minhas mãos
que o meu sorriso sem jeito,

Dr.
Dói-me o peito…


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